A complexidade das demandas brasileiras e as dificuldades de transposição do conhecimento teórico para as práticas
Em geral, os pesquisadores, diante da complexidade da demanda brasileira, vêem-se obrigados a elaborar sínteses teóricas entre diversos autores e até mesmo entre diversas ciências, porque percebem os grandes problemas que a redução do foco da relação educativa a um aspecto ocasiona. As indagações abaixo representam boa parte das inquietações de um pesquisador ou mesmo de um educador diante da complexidade que o ensino da leitura e da escrita põe para cada educador:
Foi precisamente a necessidade de analisar o contexto, de pensar a alfabetização (ou o desenvolvimento/ensino/aquisição da escrita) em termos de interação e interlocução, que fui evidenciando ao longo destes anos de trabalho – para situar essa tarefa pedagógica no seu âmbito técnico, prático, mas sobretudo teórico e político. Embutida nessa necessidade, a procura do que era relevante e significativo. Ou seja, na diversidade dos métodos, na diferença das práticas, na dispersão dos interesses, na atribuição de valores, na contingente das situações e momentos, o que importa realmente? Pode-se assegurar ou determinar isso? (Smolka, 2003 p. 29)
Nota-se que a autora se vê diante de uma diversidade de elementos que vai desde a nomenclatura, que já denuncia possibilidades de diálogos com diversas tendências, a um campo complexo de se definir e de se 'assegurar'.
Já os defensores do método fônico aplainam o campo, eliminam as diferenças, reduzem o campo do ensino da leitura à escolarização e a um conjunto de técnicas.
Ao analisar as tendências brasileiras, fixam-se apenas num confronto entre métodos em vez de analisar a complexidade que algumas linhas atingiram, sobretudo nas últimas décadas. Mesmo as influências das perspectivas ideovisuais e as da leitura significativa (Goodman, Smith, Foucambert), as dos construtivistas (Piaget, Emília Ferreiro), as dos sociointeracionistas (Vygostsky, Lúria) e as de Paulo Freire não se deram isoladamente no campo da linguagem. Nas décadas de 1980 e 1990, tais influências foram recombinadas com outras originadas de diversas possibilidades interdisciplinares: da Sociolingüística (por exemplo, oriundos da tradição laboviana com intensa intertextualidade com a obra de autores como Bourdieu, Snyders e outros), como se pode ver em Soares (1989); da Análise do Discurso francesa e da Teoria da Enunciação de M. Bakhtin, que se podem ver em Geraldi (1997), Smolka (2003), Kramer (2001), Kleiman (1995), Abaurre (1991), Rojo (1998), Orlandi (1996) e em muitos outros. Talvez as dificuldades que os autores do Relatório apontam nos PCNs, e que realmente se podem detectar, advenham de uma tentativa de elaboração de sínteses teóricas abrangentes, com a intenção de evitar um modelo restritivo, que se centre apenas em um dos aspectos do ensino.
Além desses entrecruzamentos teóricos, há também a emergência de novas pesquisas no campo da aquisição da linguagem oral, que abrem perspectivas importantes para a alfabetização e a leitura. Um exemplo é a produtiva aproximação entre Lingüística, Psicanálise e Educação, cujas concepções de linguagem, língua e escrita assumem um vínculo constitutivo com o conceito de inconsciente. Um exemplo promissor são os trabalhos de Lemos (1992), Castro (1996), Lier-de-Vito (1998), Bosco (2002), Lemos (2002) – para essa perspectiva, por exemplo, as idéias de consciência fonológica ou mesmo a concepção de sujeito autocentrado vistas no relatório não ficariam sem uma densa crítica.
Se um consenso científico é necessário para que os educadores e gestores possam contar com sugestões de programas e currículos em um esforço coletivo de enfrentar as complexas demandas brasileiras, é fundamental que ele se dê a partir de uma articulação mais ampla que considere o movimento dialético típico do conhecimento científico contemporâneo que, salvo raras exceções, cultua a inter-disciplinaridade, respeita a heterogeneidade e a complexidade dos processos e das diversidades culturais. E é importante que a busca desse consenso esteja inserida num plano amplo que faça da alfabetização e do ensino da leitura no Brasil prioridades absolutas.
O grupo de especialistas escolhido pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara representa apenas uma das perspectivas possíveis do campo da leitura e da alfabetização. Nesse sentido, a recente crítica feita por Ouzoulias (2006) sobre o perigo da importação das pesquisas anglo-saxônicas para a França pode, com muito mais razão, ser aplicada ao Brasil: país complexo, cuja língua, o português do Brasil, possui um sistema fonético-fonológico muito diferente do inglês — se o aluno inglês ou americano experimenta imensas dificuldades em correlacionar grafemas a fonemas (ou fones) e, por isso, necessita de treinos sistemáticos em fônica, o aluno brasileiro parece se dar bem com atividades que colocam a dinâmica fonético-fonológica da língua em jogo a partir do uso de textos integrais de sua cultura, sobretudo aqueles gêneros que parecem ter sido especialmente preparados pela cultura para que a criança possa brincar com a desmontagem de palavras. As fórmulas de escolha, o jogo do revestrés, a língua do Pê, os trava-línguas, as mnemonias e tantos outros gêneros lúdicos presentes na diversidade cultural brasileira já trazem em si os elementos essenciais de uma escrita.
Os textos de origem oral permitem estratégias excelentes de alfabetização e de engajamento subjetivo no universo da leitura. É possível, por exemplo, classificar os trava-línguas, as fórmulas de escolha, as adivinhas, as mnemonias de acordo com o tipo de dificuldade que o processo de alfabetização vai enfrentar no momento. Se quisermos lidar com encontros consonantais, poderemos brincar oralmente com o trava-língua – por exemplo: "troque o trinco e traga o troco" –, pronunciando-o de dois jeitos: com o encontro consonantal ou reduzida à sílaba canônica: "toque o tinco e taga o toco" (as crianças reconhecem aí, na falta do /r/, o outro que ainda tem dificuldade de fala e acaba percebendo o encontro consonantal). Ao fazer o percurso de passagem para a escrita, seguindo roteiro semelhante ao dado acima, vamos ter um pareamento que evidencia a forma e a função do encontro consonantal.
Há muitos outros jogos que permitem associar movimentos corporais ao descolamento de unidades vocabulares ou silábicas (alguns exemplos: pular corda dizendo textos, atirar a bola na parede dizendo um texto, fórmulas de escolha, alguns brincos e mnemonias) – nesse ponto, lingüística e a cinesiologia se associam e, em geral, favorecem muito a entrada no jogo dos sujeitos que apresentam dificuldades analíticas em relação à segmentação.
Insistimos que na oralidade já há os elementos fundamentais de uma escrita (Belintane, 2005), ou seja, que a estética que permite a memorização e o jogo são elementos fundamentais não apenas para que o aluno aceite o jogo de "cola-descola" da intermitência silábica e fonemática, mas também para que coloque em jogo uma subjetividade que se compraza em descobrir um espaço de movimento entre textos orais e entre estes e os textos escritos e, de uma forma mais geral, entre os elementos segmentáveis e analisáveis da fala e da escrita, sejam eles fones, silabas, grafemas, morfemas, frases, referências intra e intertextuais etc. Em Belintane (2006), mostramos o efeito da adivinha na memória, discutimos a idéia de uma "subjetividade de entre-textos", que analisa forma e sentido ao mesmo tempo.
Nesse contexto de ensino, é possível e recomendável que se utilizem as concepções de Emília Ferreiro e atividades com famílias silábicas (com atividades orais, cópia, ditado etc.). Note que partindo do oral, dos gêneros orais e da leitura, as fases de Ferreiro não estarão centradas apenas na escrita e as atividades com famílias silábicas partirão de contextos mais complexos (textos de origem oral ou mesmo da pesquisa em livros). Frisemos bem: a atividade com família silábica é muito importante, mas somente deve ser posta em jogo seletivamente a partir de diagnósticos precisos e de preferência individualizados. Só se abordam as famílias silábicas que de fato constituem dificuldades — somos radicalmente contra a exaustão do contínuo das famílias silábicas como forma de contemplar todos os alunos e todas as dificuldades. Nivelar a classe dessa maneira é assumir uma metodologia de baixo custo, mas de alto risco.
Nas situações heterogêneas de ensino, não há outra solução. É necessário trabalhar a partir de diagnósticos precisos, com mais de um material didático10 e até mesmo com dois professores simultaneamente — um dos problemas atuais nessas salas é que o professor não consegue dar conta dos diversos níveis que tem diante de si.
Voltando à polêmica dos métodos, cabe aqui ainda uma pergunta e um comentário: se os próprios especialistas defensores do método fônico (Adams et al., 2006) admitem que apenas 25% dos alunos de classe-média e um "número bem maior" daqueles "menos ricos em atividades de letramento" não dispõem de consciência fonológica nas séries iniciais (p. 19), por que assumir um método que generaliza para qualquer sujeito a instrução direta (aqui entendida como treino grafofônico)?
Não temos dúvida de que a língua permite diferentes subjetividades, algumas mais propensas ao jogo desejante da intermitência – que permite, por exemplo, não só a desmontagem das palavras, mas sobretudo um ir-e-vir entre textos e palavras, que pode favorecer a leitura fluente e significativa; e outras que assumem um modo mais pregnante de lida com a própria fala – que não aceita o ato do corte, a segmentação das palavras. Em nossos estudos, temos identificado na história desses sujeitos uma carência de jogos lúdicos no período de aquisição da fala (Belintane, 2006b) e nos recusamos a classificá-los simplesmente como disléxicos.
Em nossas pesquisas e cursos de formação de professores, reunimos condições de fornecer aos professores materiais didáticos contextualizados, elaborados a partir de suas próprias demandas, embora sejamos sempre obrigados a reconhecer que tudo se afunila em dois gargalos: redes escolares que não fornecem condições de trabalho para que a equipe possa pôr no centro uma prioridade (no caso a alfabetização e o ensino de leitura em situações heterogêneas de ensino); professores que não dispõem de uma formação inicial necessária à atividade que exercem – uma olhada nos currículos de pedagogia é bastante reveladora: no caso da Universidade de São Paulo, que é quase sempre vista como modelar, há apenas um semestre dedicado ao estudo da alfabetização e uma disciplina optativa intitulada "Metodologia do Ensino de Lingüística". A formação do professor, tanto a inicial como a contínua, é um dos nós principais dessa intricada rede de problemas.
Não é por acaso que o amplo contexto do ensino da leitura acaba sendo tratado como contraposição entre métodos de alfabetização e que alguns políticos aceitam a polarização e acabam assumindo este ou aquele método como forma de fugir da complexidade e de ter em mãos uma solução rápida e barata para um problema antigo, que deveria ser tratado como prioridade, de forma sistêmica e não pontual.
Educ. Pesqui. vol.32 no.2 São Paulo May/Aug. 2006
Comentários de Lucilene.
O escopo do texto aponta uma preocupação dos pesquisadores da necessidade de se avançar no processo da leitura e escrita, uma vez que os mesmo não se obstem em demandar e se envolver no foco educativo, mesmo sabendo que os problemas ocasionados tem causado controvérsias no panorama literário estreitando cada vez mais os fatores presentes no mundo da leitura. Nota-se também, que esta organização vem dando conta de novos posicionamento da leitura e da escrita para o bem salutar de novas perspectivas no mundo atual.
Nenhum comentário:
Postar um comentário